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Audiência pública debate história e memória das pessoas atingidas pela hanseníase

Crédito da foto: Gustavo Sales/Câmara dos Deputados

A Comissão de Direitos Humanos e Minorias debateu em setembro possíveis processos de tombamento dos espaços e edificações relacionados à história e à memória das pessoas atingidas pela hanseníase. A audiência pública foi proposta pelas parlamentares Vivi Reis (PSOL/PA) e Tereza Nelma (PSDB/AL), que argumentaram que os chamados “patrimônio da dor” e “patrimônio sensível” são fundamentais para reconhecer as histórias de populações e grupos sociais que tiveram suas narrativas invisibilizadas e sufocadas.

“Esse fortalecimento da questão patrimonial e cultural pode ajudar a romper com esse estigma associado às pessoas atingidas pela hanseníase”, afirmou Vivi. “O tombamento dos espaços das histórias e memórias da hanseníase representa muito para toda a sociedade, por despertar em nós a empatia e nos ajudar a enxergar a valorização dos direitos humanos perdidos numa época de eventos traumáticos”, disse Tereza, reforçando que a preservação poderia ser também uma das formas de reparação do Estado brasileiro pelas violações cometidas.

“Não podemos voltar ao passado e construir a vida dessas pessoas, nem devolver a elas tudo que lhes foi perdido. Porém, temos o dever de reconhecer o erro e buscar preservar esse patrimônio, que não é somente a história das pessoas atingidas pela hanseníase, mas sim a história”, complementou a parlamentar, que também defende a criação de uma frente parlamentar para dar visibilidade ao tema.

Cuidado com as pessoas e educação em direitos humanos
Para Alice Cruz, relatora especial das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação contra as Pessoas Afetadas pela Hanseníase e seus Familiares, a reflexão em torno do tema deve se concentrar em dois pontos essenciais: pessoas que foram segregadas e seus descendentes e a importância desses espaços para a educação em direitos humanos. “Essas pessoas têm direito de decidir se querem continuar a viver aí, têm direito a receber atenção por parte do Estado no que concerne à saúde, segurança social, oportunidades de emprego e educação”, defendeu.

“E esse também é o papel dos hospitais-colônias no mundo, que podem ser instrumentos poderosos de educação em direitos humanos”, observou Alice, sobre a importância da história para a construção de sociedades justas e igualitárias. “A minha sugestão é que pensemos nessas duas coisas não separadamente, mas interconectadas, o cuidado das pessoas e a construção de sociedades onde o Estado não viola direitos, mas os promove e garante por meio da educação em direitos humanos”.

Para Yuri Costa, presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos, a história da hanseníase no Brasil faz parte de uma série de lesões sistemáticas aos direitos humanos protagonizadas pelo Estado brasileiro, que naturalizou o isolamento e manteve essa política até a década de 1980. Yuri lamentou a invisibilização do tema, ainda desconhecido pela enorme maioria da população, e reforçou a necessidade de políticas de reparação aos atingidos e seus familiares.

“Desde a década de 70 do século dezenove [1870], cientificamente já se tinha conhecimento do bacilo da hanseníase, de que ela não é uma doença fatal, cuja transmissão pode ser controlada. Nós tivemos o Estado brasileiro prorrogando, prolongando por décadas o tratamento pautado no isolamento de dezenas de milhares de pessoas no Brasil”.

“Se a gente não tem memória, se a gente não consegue saber o que aconteceu com a política do isolamento, o que isso trouxe de consequência para as pessoas que foram isoladas e seus familiares, a gente está fadado a repetir os erros do passado”, reforçou Thiago Flores, do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan). “A sociedade como um todo não entrava dentro desses locais de isolamento porque achava que era algum perigo para a sociedade”, lembrou ele, afirmando que os hospitais colônia são importantes patrimônios materiais e imateriais.

“É importante lembrar a política de isolamento, para que atrocidades ligadas ao isolamento compulsório não aconteçam novamente. Isso tem acontecido diariamente nas grandes cidades do Brasil, na questão dos usuários de crack e outras drogas. Em 2021, dezenas e dezenas de filhos são separados das suas mães. Quando não se tem uma política de preservação das famílias, as pessoas são arrancadas, retiradas, colocadas para adoção, é uma política muito parecida, inclusive”, destacou.

Mulher, Família e Direitos Humanos
Claudio Castro Panoeiro, secretário nacional da Pessoa com Deficiência do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que tomou posse recentemente, afirmou que a Secretaria vai desenvolver iniciativa para recuperar essas histórias a partir de visitas às colônias e entrevistas com as pessoas atingidas. “Muitos deles têm idade avançada e é importante fazer o resgate dos discursos, das histórias e das memórias que têm sobre aqueles locais, para que isso passe ao conhecimento da população”, frisou.

Panoeiro contou que expediu ofícios buscando resgatar o registro de imóveis dessas colônias, como forma de recriar a cadeia fundiária e procurar formas para resolver a questão dos imóveis. “É importante a reconstrução dessa cadeia dominial para que nós possamos, a partir dela, conseguir encontrar a solução do problema”. “Em relação ao processo de tombamento propriamente dito, existe um contato com a embaixada do Japão para que eles nos ajudem na primeira fase”, antecipou.

Relato de quem viveu a experiência
“Fui atirada lá e presa. Sete anos sem sair. A gente colocava o pé no portão e todo mundo corria. No ônibus era: ‘olha, tem leproso’, nós íamos correndo para o mato. Eu só queria saber por que me levaram assim, sem dizer nada”, questionou Eva Pereira Nunes, pessoa atingida pela hanseníase e internada com 12 anos em uma colônia. “Fiquei todo esse tempo lá, e lá é minha casa”, comentou. Eva lembrou ainda que a família, inclusive o pai, tinha muito medo, e não “quiseram saber” dela. Hoje com 76 anos de idade, ela ainda vive na Colônia Itapuã, a 60 quilômetros de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. “Para onde nós vamos? Agora eu estou no fim da vida já, estou muito doente”, concluiu, dizendo que sua casa era o seu mundo e pedindo para ali permanecer.

Fonte: Agência Câmara de Notícias