A partir de registros documentais, já era sabido que as evidências da existência da hanseníase são milenares – até a Bíblia traz referências que são associadas à doença. Usando técnicas da genômica (capaz de analisar e comparar os dados do código genético), um estudo envolvendo mais de 30 pesquisadores de 13 países conseguiu mapear a evolução do bacilo Mycobacterium leprae, causador da enfermidade. No Brasil, participaram o Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e mais três instituições parceiras.
Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) estimam que mais de 200 mil novos casos de hanseníase são detectados no mundo a cada ano. Somente no Brasil, segundo país com maior número de registros, foram aproximadamente 152 mil notificações no período de 2012 a 2016. No topo do ranking, a Índia conta mais de 100 mil novos infectados anualmente.
Com este, que é o maior e mais abrangente estudo sobre sequenciamento do genoma de amostras de Mycobacterium leprae já realizado, foi possível entender a evolução e a dispersão global do microrganismo, bem como ter uma visão ampliada sobre um aspecto que gera preocupação crescente entre os cientistas: a resistência aos antibióticos adotados no tratamento da doença. Durante as investigações, também foram identificadas novas linhagens do bacilo e mutações até então desconhecidas.
Os laboratórios de Hanseníase e de Biologia Molecular Aplicada a Micobactérias do IOC integram o estudo, que foi publicado na conceituada revista Nature Communications, do grupo Nature (clique aqui e confira o artigo na íntegra, em inglês). No Brasil, também participaram as universidades federais de Goiás, Pará e Brasília. A iniciativa é liderada pelo cientista Stewart Cole, do Global Health Institute (Suíça).
Descobertas do estudo
O primeiro desafio do estudo foi desenvolver métodos para isolamento e purificação do DNA do bacilo que permitissem que as sequências completas do genoma fossem obtidas diretamente de amostras de biópsia de pele humana. Foram contempladas 154 amostras, representativas de 25 países. Do Brasil, foram analisados 34 genomas, representativos de cinco Estados: Rio de Janeiro, São Paulo, Pará, Ceará e Maranhão.
As amostras provenientes do Rio de Janeiro são de pacientes atendidos no Ambulatório Souza Araújo. Essa é uma unidade assistencial ligada ao Laboratório de Hanseníase que presta atendimento no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e atua como referência de nível nacional junto ao Ministério da Saúde.
Após comparação dos genomas obtidos a partir das amostras, foi possível estudar as associações geográficas entre elas e delinear possíveis rotas de disseminação da hanseníase. Com isso, chegou-se a uma árvore filogenética (algo parecido com uma árvore genealógica, capaz de indicar derivações ao longo do tempo), resultando em 13 linhagens em circulação no mundo. O achado inclui a identificação de uma linhagem inédita, chamada de 3K-1, de origem asiática.
No Brasil, foi identificada a circulação de cinco linhagens, com predomínio de cepas – algo como variações internas das linhagens – originárias da Europa e da África. Também há registro da circulação de uma linhagem proveniente da Ásia. “Este resultado está em sintonia com a história do nosso país. Vimos que linhagens da micobactéria foram introduzidas em território nacional há mais de 500 anos”, comenta o chefe do Laboratório de Hanseníase e integrante do estudo, Milton Ozório Moraes.
Na pesquisa, uma curiosidade: uma das variações em circulação no Brasil deriva diretamente de cepas que circularam na Europa da Idade Média. Com isso, é a variação do bacilo com origem mais antiga atualmente em circulação nas Américas. Uma das diferenças mais destacadas no âmbito do país foi a alta frequência da variação SNP tipo 3 na região Sudeste, enquanto a variação SNP tipo 4 predomina no Norte e Nordeste.
“Isto se deve à introdução da hanseníase por populações diferentes: a variação SNP tipo 3 é mais amplamente encontrada na Europa, enquanto a SNP tipo 4 é mais representativa da população da África Ocidental. A migração da Europa e o tráfico de escravos com pontos de entrada distintos está na base dessas diferenças”, relata o pesquisador Philip Suffys, chefe do Laboratório de Biologia Molecular Aplicada a Micobactérias do IOC.
Mutações à vista
Com tratamento bem estabelecido desde a década de 1980, o bacilo causador da hanseníase é, na maioria dos casos, combatido com um coquetel de medicamentos. Se realizada precocemente, a terapia é capaz de prevenir tanto as lesões irreversíveis da doença e, no momento em que a medicação é iniciada, a transmissão do agravo é interrompida. No entanto, o aumento da resistência do Mycobacterium leprae aos fármacos tradicionalmente utilizados é um desafio em ascensão.
“Não existem dados que permitam precisar exatamente qual o índice de resistência a medicamentos no Brasil ou no mundo. Com base em artigos científicos publicados e informações enviadas por centros de referência de diversos países, foi estimada uma taxa de 8% de resistência aos antibióticos nos casos de recidiva da infecção; ou seja, quando a enfermidade retorna após o fim do tratamento. Porém, esse percentual é calculado com base em um número pequeno de casos, investigados apenas em alguns países, incluindo o Brasil”, pondera Moraes. Há, ainda, situações de multirresistência, em que o Mycobacterium leprae apresenta resistência a mais de um dos compostos usados na terapia.
A pesquisa atual possibilitou a identificação de 260 mutações em genes do bacilo, algumas associadas diretamente à resistência aos medicamentos. Oito sequências genéticas, sendo duas obtidas a partir de amostras brasileiras, foram caracterizadas como “hipermutadas”, uma vez que sua composição sofreu modificações expressivas. Possivelmente, estão associadas à resistência a medicamentos.
No Brasil, uma rede de vigilância está atenta aos casos de hanseníase resistente aos antibióticos. Formada por centros de referência, essa rede analisa amostras de pacientes na busca de genes que já são conhecidos por sua associação com a falta de sensibilidade aos medicamentos. O IOC é um desses centros, em uma ação conjunta dos laboratórios de Hanseníase e de Biologia Molecular Aplicada a Micobactérias.
Suffys conta que, além de aperfeiçoar o conhecimento sobre a filogeografia do Mycobacterium leprae, o estudo ampliou o conhecimento a respeito dos mecanismos de resistência a antibióticos, descrevendo mutações que podem se tornar possíveis alvos para métodos de detecção rápida da resistência. “Ao mesmo tempo em que abre caminho para o desenvolvimento de novas tecnologias para detecção de genótipos e resistência, a pesquisa também mostra a existência de cepas do Mycobacterium leprae chamadas de extensivamente resistentes a drogas, situação já amplamente descrita na tuberculose”, afirma o pesquisador.
Uma vez que seja possível detectar precocemente a resistência a medicamentos convencionalmente utilizados para tratamento da hanseníase, podem ser prescritos esquemas de tratamento mais adequados, reduzindo, assim, a disseminação de cepas resistentes.
Estudos continuam
O grupo de especialistas brasileiros e estrangeiros permanece a todo vapor com novas análises, que procuram ampliar ainda mais o estudo que acaba de ter seus resultados publicados. A intenção é desbravar a Ásia Central, área não estudada por falta de amostras, para testar a hipótese de que a linhagem 3K, considerada a mais antiga, se originou no Leste Asiático e se dispersou para o Oeste por meio de civilizações como os persas, há cerca de três a cinco milênios.
Fonte: Agência Fiocruz de Notícias