Silenciosa e negligenciada, a hanseníase acumula milhares de vítimas ano após ano no Brasil. Entre 1999 e 2018, foram diagnosticados 768.215 casos da doença, que pode ser detectada com facilidade. Mesmo com as constantes campanhas educativas, com foco no diagnóstico precoce, a detecção de novos casos tem indicado uma média de 38 mil registros por ano. Atualmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) coloca o Brasil no segundo lugar no mundo em casos de hanseníase. Perde apenas para a Índia, que em 2017 apresentou 126.164 registros.
Para a coordenadora da Campanha Nacional de Hanseníase da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), Sandra Durães, trata-se de uma doença que afeta, sobretudo, regiões com menor índice de desenvolvimento humano (IDH). Apesar de o Brasil ser considerado uma potência econômica, a existência de desigualdades regionais repercute na forma como o registro de novos casos se materializa, explica Sandra.
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Nessas duas décadas analisadas, no Brasil, as maiores detecções de novos casos, em números absolutos, foram registradas no Maranhão (84.628 notificações), Pará (83.467), Mato Grosso (63.779), Pernambuco (57.355) e Bahia (52.411). Os dados foram apurados e avaliados pela Sociedade Brasileira de Dermatologia com base em informações da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), do Ministério da Saúde.
Prevenção
Como janeiro é o mês dedicado à conscientização, ao combate e à prevenção da hanseníase no país, a Sociedade Brasileira de Dermatologia somou forças no último mês para apontar a importância de se enfrentar essa doença tropical de evolução crônica, que se manifesta principalmente por meio de lesões na pele e sintomas neurológicos, como dormência e diminuição de força nas mãos e nos pés.
Seu diagnóstico, tratamento e cura dependem de exames clínicos e, principalmente, da capacitação do médico. Nesse sentido, o presidente da SBD, Sergio Palma, afirma que a entidade tem colaborado com a capacitação de médicos de outras especialidades e generalistas, o que contribui para o fortalecimento da rede de detecção da doença. “No entanto, fica o alerta: quando descoberta e tratada tardiamente, a hanseníase pode causar deformidades e incapacidades físicas”, ressalta.
Ao longo dessas duas décadas, a avaliação dos números da hanseníase comprova que seu enfrentamento exige o desenvolvimento de diferentes estratégias devido à complexidade de seus determinantes. Múltiplos fatores estão envolvidos nessa questão, entre eles a dificuldade de acesso da população aos serviços de saúde, principalmente nas regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste, levando ao diagnóstico tardio.
Por um lado, percebe-se um movimento de queda constante no total de novos casos identificados entre 1999, quando o Brasil contabilizou 43.617 registros da doença, e 2016, onde esse total baixou para 25.214. Porém, os dados do Ministério da Saúde apontam uma pequena alta a partir de então, com 26.875 notificações em 2017 e 28.657 em 2018.
Detecção
No que se refere à taxa de detecção da hanseníase na população geral, os indicadores também oscilam. Em 2000, ela era de 25,44 casos por 100 mil habitantes, chegando a 12,23 em 2016. Porém, como na contagem de números absolutos, esse índice também voltou a apresentar alta nos anos seguintes: 12,94 notificações por 100 mil habitantes em 2017 e 13,70 em 2018.
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“Isso não significa necessariamente uma piora repentina. A doença não se comporta como uma epidemia viral. Na verdade, é a prova de que a rede de atendimento buscou mais ativamente os casos para fazer o diagnóstico mais precoce. Contudo, mostra que o volume de pessoas com hanseníase ainda é significativo, sendo que muitos não sabem que possuem essa condição”, alerta o diretor da SBD e especialista no assunto, Egon Daxbacher.
Segundo ele, esse aumento no número de novos casos detectados, entre 2016 e 2018, resulta de mudanças na estratégia de prevenção e combate à doença. Dados do Ministério da Saúde apontam, por exemplo, que houve aumento no total de casos detectados a partir de ações como campanhas, exames feitos em pessoas que mantêm contato (direto ou periférico) com pacientes e exames de coletividade.
O percentual de contatos examinados passou de 60,9% em 2000 para 81,4% em 2018. “Mudou o modo de detecção, que deixou de ser apenas por demanda espontânea ou por encaminhamentos”, lembra Daxbacher. Além disso, continua ele, o tamanho da rede assistencial na atenção básica, onde a grande maioria dos pacientes recebe acompanhamento, quase triplicou. Há 18 anos, eram 3.327 serviços que atuavam nesse sentido. Atualmente, são 9.051.
Carregada de estigmas, a hanseníase apresenta uma taxa de mortalidade relativamente baixa, em comparação com o número de casos diagnosticados no período. Entre 2008 e 2017, em todo o Brasil foram registrados 1.801 óbitos decorrentes dessa doença. O maior volume de mortes aparece no Maranhão (269), Bahia (136), Ceará (135), Rio de Janeiro (134) e Pará (126).
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Por sua vez, o tratamento da enfermidade, o qual é eminentemente ambulatorial, tem gerado inúmeros pedidos de internação para o acompanhamento de pacientes com maiores complicações, com necessidade de cuidados mais especializados e até mesmo cirúrgicos para tratar as sequelas deixadas.
Internação
Nas duas décadas analisadas, o Sistema Único de Saúde (SUS) processou 38.745 pedidos de internação para pacientes por conta da hanseníase, com o custo total estimado em R$ 27,6 milhões (valores não atualizados). Ao longo do período, esses procedimentos foram mais adotados no Paraná (4.514 casos), Pernambuco (4.341), Santa Catarina (3.246), Goiás (2.811) e São Paulo (2.682 pedidos).
Diagnóstico precoce
Se na Idade Média as pessoas com hanseníase eram obrigadas a anunciar sua presença carregando um sino, o preconceito se arrastou pelos séculos. No Brasil, há algumas décadas o isolamento compulsório era adotado, separando famílias e amigos. No entanto, até hoje muitos ignoram que essa doença tem tratamento eficaz, disponível de forma gratuita na rede pública.
O Grau de Incapacidade Física (GIF) nos casos diagnosticados como de Grau 2 fica em 10,2 ocorrências por milhão de habitantes. Nos pacientes com atestação de cura, 68% foram avaliados quanto à incapacidade. Conforme diz Sandra Durães, durante a evolução da doença, o acometimento do nervo periférico faz com que o paciente apresente alterações motoras e sensoriais. “Com o tempo, se lesiona e desenvolve infecção na pele que pode se transmitir ao osso. Também corre o risco de perder tecidos, como ocorria no passado. Atualmente, isso é muito raro, porque o tratamento é eficaz”, observa.
Conforme destaca Egon Daxbacher, o diagnóstico precoce é muito importante e crucial para o controle da doença. “Se o paciente conta com atendimento médico e dos outros profissionais da equipe de saúde e toma seus remédios, ele vai ficar bem. Mas se não houver acompanhamento e adesão ao tratamento, a hanseníase evolui, com possibilidade de aumentar o dano neural. As manchas reduzirão e o doente deixará de ser um agente de transmissão, mas as perdas motoras não serão recuperadas. Em decorrência, essa pessoa exigirá acompanhamento multiprofissional e de médicos de diferentes especialidades para não se lesionar e reduzir o risco de ficar incapacitada”, conclui.