Entre os desafios para a erradicação da hanseníase no Brasil, pesquisadores da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP), da USP, encontraram desigualdades sociais, como baixas condições de moradia e de renda, e educação precária. Esses determinantes sociais aparecem relacionados a casos da doença detectados na tríplice fronteira Brasil, Argentina e Paraguai, região Sul.
A análise foi feita a partir do diagnóstico de 840 pacientes, com idades entre 15 e 59 anos, atendidos entre 2003 e 2015 no serviço de saúde da cidade de Foz do Iguaçu, Paraná. A região fronteiriça recebe grande fluxo de migrações dos países vizinhos, sendo os dados relativos somente aos doentes que passaram por atendimento brasileiro. “Infelizmente, não tivemos acesso aos dados do Paraguai e da Argentina, pois estes países não apresentam os dados informatizados e são de difícil acesso, até mesmo pelo sistema de saúde ser diferente do existente no Brasil”, relata o professor Ricardo Arcêncio, um dos autores do estudo.
O professor da USP afirma que esses pacientes utilizam as unidades de atendimento do lado brasileiro, tanto do serviço público quanto do privado, porque o Brasil é “o único país da América Latina com um sistema nacional de saúde”. No Paraguai, por exemplo, “somente 50% da população possui saneamento básico e aquele país tem o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da América do Sul”.
Mulheres mais suscetíveis e baixa escolaridade
Esta pesquisa não observou diferença significativa na incidência de hanseníase quanto ao sexo, mas outros estudos já demonstram que pode ocorrer aumento da incidência da doença em mulheres. Arcêncio comenta que, devido à estigmatização da enfermidade, a vergonha em procurar ajuda médica por parte dos homens (que, em geral, já acessam menos o serviço de saúde) poderia explicar o maior número de diagnósticos em mulheres e, consequentemente, de notificações de casos novos.
Outro fator que pode ser considerado nessa questão é o do convívio familiar. “Na maioria das famílias, a mulher tem a função de cuidadora, dona do lar e o contato com os moradores do domicílio é direto e prolongado”, lembra o professor.
Entre os motivos para o estigma, o pesquisador cita o medo da rejeição da família, dos amigos, das pessoas do seu ciclo social; o medo de contaminar outras pessoas, o que acarreta o diagnóstico tardio; as incapacidades; e o aumento da cadeia de transmissão da doença. Falar abertamente sobre a hanseníase no cotidiano dos territórios – seja por profissionais de saúde e líderes comunitários ou pela educação popular – é um recurso para superar o problema.
A baixa escolaridade também aparece no estudo como fator relevante. Dos pacientes diagnosticados, 60% possuem ensino fundamental incompleto, o que impacta em oportunidades para uma condição de vida melhor e, consequentemente, maior vulnerabilidade para a hanseníase. Arcêncio argumenta que a escolaridade é componente importante nos processos saúde-doença de forma geral. Menor escolaridade tende a menores oportunidades sociais e vulnerabilidade “não somente à hanseníase, mas também a outras enfermidades negligenciadas”.
Apesar do estudo evidenciar uma relação muito forte da doença com os determinantes sociais ou com “as iniquidades”, o professor ressalta que “todos, independentemente de classe social, estão vulneráveis à hanseníase”.
Hanseníase
A hanseníase é uma doença infecciosa, crônica e incapacitante que afeta o sistema nervoso central e causa grandes neuropatias que geram deformidades e incapacidades físicas. Pode ser transmitida pelo ar, pelas gotículas de saliva presentes na respiração, e se manifesta principalmente em países em desenvolvimento, como o Brasil.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o país ocupava, em 2015, o segundo lugar em número de ocorrências, com uma taxa de 14,6 casos por 100 mil habitantes. Por esses números e por não ter atingido a meta da OMS de um caso por 10 mil habitantes, o Brasil é considerado prioritário para o controle da hanseníase.
Ainda de acordo com a Organização, a detecção de casos novos, no Estado do Paraná e no país, vem caindo a uma taxa anual de 4%. Entretanto, os pesquisadores da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto questionam se esses resultados demonstram uma real diminuição ou refletem as subnotificações, pelas dificuldades no acesso aos serviços de saúde. Arcêncio recorda que há poucos estudos no Brasil com esse enfoque, e que os resultados das análises que apresenta agora objetivam ajudar no planejamento de ações de erradicação da hanseníase, principalmente nas regiões da tríplice fronteira.
O estudo faz parte do doutorado da professora Ivaneliza Simionato de Assis, em andamento na EERP, com orientação do professor Ricardo Arcêncio. Também estão no artigo Social determinants, their relationship with leprosy risk and temporal trends in a tri-border region in Latin America, publicado na edição de abril da revista Plos One Neglected Tropical Diseases (clique aqui e confira o artigo na íntegra). Ao lado de Arcêncio e Ivaneliza, assinam a publicação os pesquisadores Marcos Augusto Moraes Arcoverde, Antônio Carlos Viera Ramos, Luana Seles Alves, Thais Zamboni Berra, Luiz Henrique Arroyo, Ana Angélica Rêgo de Queiroz, Danielle Talita dos Santos, Aylana de Souza Belchior, Josilene Dália Alves, Flávia Meneguetti Pieri, Reinaldo Antônio Silva Sobrinho e Ione Carvalho Pinto.
Estratégia Global de Hanseníase
A OMS e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) criaram a Estratégia Global de Hanseníase 2016-2020, com diretrizes para ações que detectem precocemente a enfermidade e para fornecer tratamento imediato para prevenir e reduzir a sua transmissão. A estratégia foi apresentada em Palmas, no Tocantins, em outubro de 2017, na primeira Conferência Livre de Vigilância em Saúde, que teve como foco a hanseníase.
O tratamento da doença no Brasil é gratuito e realizado na Atenção Básica do Sistema Único de Saúde (SUS). Denominado poliquimioterapia (PQT), consiste na associação de dois ou mais antibióticos, de acordo com a classificação operacional da hanseníase em paucibacilar e multibacilar. O tratamento completo é extremamente importante, pois diminui a carga bacilar e reduz a cadeia de transmissão da enfermidade, bem como previne a resistência medicamentosa.
Fonte: Jornal da USP
